terça-feira, 22 de agosto de 2006

Um passo atrás para ver adiante

Ora tínhamos ficado em que era O Pão o que eu incansavelmente aspirava. Fuçava como uma besta amansada a procura de osso com carne, ou deixando-me de lérias tipo mergulhador à procura de tesouro.

Entenda-se bem, que já o disse, não andava nesta azafama porque a nobre profissão de pasteleiro fosse pouco digna, mas (e isto é uma revelação envolta em açúcar pilé) porque quando um pasteleiro faz e mostra bom Pão, ser pasteleiro é uma ode ao Olimpo! Sim, sacudam os aventais, porque espera-vos um pedestal!

Claro que entre as barbas se me denota uma egoísta intenção, de demonstrar a esses fritadores que tinha razão! Sorrir e sair de acção no auge, envolto numa nuvem de branca farinha de trigo moagem numero três!

Contudo andava eu cego, trôpego e mentalmente incapaz quando me meti nesta aventura condenada.

Mandei os meus melhores bolos a essas criaturas mais perto dos deuses. E já contei como era vista a graça. Mas mandava, repenicava as criações, atiçava a minha quadrilha a criações mais faustosas e deliciosas, complexas e indecifráveis, e estes assassinos carinhosos empurravam-me mais e mais para me aproximar d’A Padaria. Tivemos momentos tão loucos e incontáveis que julguei que nos imolaríamos em conjunto. Creio agora, neste lapso de lucidez, que andávamos drogados...é melhor não reflectir sobre isto...

Os gourmets, sem eu saber, metiam com uma forquilha os meus amados bolinhos pela goela dentro, antes que aos deuses lhes cheirasse. Empanturrados e já de olhos esgazeados, limpavam os restos que lhes corriam pela face nos folhos das suas mangas renascentistas. E de feito em feito, de comezaina em comezaina, essas criaturas foram destruindo a seu bel-prazer as subtis distinções que se apreciam nas execuções pasteleiras.

E todo o rédito da nossa arte para essa odiosa amalgama humana era igual, disforme e indistinto. Continuávamos nós, sem a certeza de gás para o forno, farinha para os bolos, ou sustento para as pernas. Tudo era imprudentemente próprio de destemidos alienados. Queríamos chegar ao Pão. Ver a receita, o segredo, tocar-lhe a textura...queríamos fechar O Ciclo.

Lampejante aparição

Parece mentira, uma treta, patranha, albugem, burla, peta...parece, mas não é. A ausência tem mesmo a ver com isto, a desculpa mais esfarrapada, gasta e usada do quotidiano: falta de tempo.
Ouço, com ligeiro desdém, vozes unânimes a contestar: “falta de tempo?! Já lá vai mais que uma fiada de 30 dias! Ninguém tem tanta falta de tempo!”

Pois não terão aqueles que, qual rábula das pedras grandes-pedras pequenas-areia-água dentro de um frasco, organizam-se muito bem e encaixam tudo nessas míseras 24 h do dia, que na verdade são mais-ou-menos 12, porque eu tenho de dormir e comer.

Ora eu ando de alguidar de fermento para bolos debaixo do braço, escada acima escada abaixo, limpando o suor que me caí pelo rosto e me empapa a bata. Sempre a congeminar se ponho mais lenha no forno, ou se largo esta vida. Se salgo ou adoço o preparado. Perco-me em pensamentos vãos. Afogo-me na frustração de ter coisas para fazer e nem disposição, nem mãos limpas nem espírito aberto. Entendem porque não dei com as caras neste pasquim? Ah! Fosse eu um trabalhador organizado...mas calhou-me o tango certo de quem amassa, não de quem põe na montra da padaria!

Seja como for, tinha de aparecer. Não porque tenha prometido, mas se assim largo os segredos negros deste covil, salvo a minha alma e o destino de quem aqui se mete.

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Adjuvantes

Não poderei passar à trama sem com verdade e devida admiração, passar um breve traço desta pena informática, pelos adjuvantes da tão lendária arte de bem-fazer bolinhos.

Note-se que nunca este périplo alfabético será suficiente para agradecer, engrandecer e indicar todos os adjuvantes, nem terá largura de capaz de abarcar os feitos épicos de todos estes anos. Pois para isso teria de certo de igualar-me em páginas e inspiração ao senhor do colarinho em acordeão e o olho arriscado. E as musas do Tejo não me dão confiança...

Mas mesmo assim e para o esclarecimento de quem me escuta vale a pena espreitar essas mentes ardilosas, até porque ajudar-vos-á a pintar esses cenários maquiavélicos de que vos falei desde o primeiro momento. Além de que confio a minha sorte a ter de me cruzar com esta comitiva deverás perigosa e pela minha pele não poderia deixar em vão ou em forma de esquecimento a referência. E mesmo que me refugiasse na justificação de que não abordei a existência deles porque é óbvio entender que tinha de ter ajuda e que até era claro o reconhecimento da sua morada, não escaparia à decapitação! Seria uma atitude classificável como a de um fritador de rissóis!

E nem no momento de estalar o óleo com as bolas fermentadas de Berlim me quis comparar a esse clã! Quero deixar claro que não é por desdém que o digo, mas por entender que os fritadores de rissóis são...como diria...são uma classe à parte! Porque fritar rissóis deita cheiro, faz barulho e providencia ao seu executante um ar gorduroso e desgastado, ou seja transparece ao espectador (e faz-se força para parecer) um trabalho árduo!

Como disse antes ser pasteleiro não é fácil, fazer bolinhos pressupõe uma dedicação feroz; porém é uma profissão mal entendida e mal amada.

Não posso por isso deixar de louvar a todos os pequenos psicopatas que se dedicaram a seguir-me. E mais, essas incautas criaturas são r-e-a-l-m-e-n-t-e inteligentes, dedicadas e proveitosos talentos escondidos. Apesar de desprovidas de senso de esperteza, senão seriam outra coisa.

Poderiam fazer qualquer coisa. E fá-lo-iam certamente muito bem.
Até mesmo...fritar rissóis.

Mas a verdade é que o senhor da ordem, o que distribui as tarefas pelos mortais (sim, esse, o verdadeiro special one) reservou-me esta caterva fiel, expectante, grandiosa e modesta.

Estes seriam os Meus Pasteleiros.

Os gourmets animavam o espírito de equipa, mas não suportavam A equipa. Queriam indivíduos para mais facilmente vota-los – se assim fosse conveniente – à ruína. Como os predadores preferem atacar os que estão isolados.

Unidos crescemos numa quadrilha odiada por todos. Coesos e impenetráveis, com um linguajar próprio, cheio de piadas aos cinocéfalios que nos rodeavam. Não perdoávamos um movimento em vão. Atiçávamos com profundas afectações de perfeccionistas a incredulidade dos restantes: “Mas que dizem eles? Porque não se queixam? Porque querem ser perfeitos?”.
Ninguém armava chantilly como nós! Ninguém o mantinha apetecível sob calor e pressão! Quem poderia fazer aquelas imensuráveis torres de profiteroles? Só mesmo Estes Pasteleiros! Pela genialidade, pelo dom, pela loucura enraivecida que gera pormenor em circunstâncias deverás adversas. A verdade é que de vez em quando passávamos as marcas e chegávamos a ser insuportáveis, mas isso agora não interessa nada.

Vencemos todas as batalhas nestas fornadas. Fui um privilegiado.

E enquanto ganhávamos distancia, sabíamos saber algo que mais ninguém sabia.

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Fornadas e aspiração

Durante todo o tempo tinha feito bolos. Maiores. Menores. Com e sem creme...assim como as bolas de berlim.
É verdade que por vezes havia biscoitos esturricados porque tinha perdido a mão, e o forno estava demasiadamente quente. Mas também tinha tirado fornadas de deliciar a plateia.

Controlavam-se com as palmas, pois os gourmets não se extasiam com bolos, bolinhos e bolachas. Faziam por aparentar serem verdadeiros degustadores, mas a verdade é que os apanhei umas quantas vezes (se calhar até demasiadas) a comer aquelas impressionantes piramides feitas de restos atrasdos de outros bolos.

Mas não me proponho aqui a apreciar o percurso destes...gourmets! Por isso, adiante!

No fundo, graças a antiguidade que trago nesta profissão e nesta vida, com a sabedoria que me deram as queimaduras já indisfarçáveis que se me notam nas mãos, reconhecia naqueles esgares verdadeiros "OHHH"s de admiração pela arte, paciência e técnica que eu apresentava ao transformar aqueles míseros recursos em algo comestível e de sabor verdadeiramente reconfortante.

Percebi que os meus bolos eram como ar que respiravam. Não me deixavam investir num forno novo, mas pediam mais e mais fornadas!

A vida de um pasteleiro é muito dificil, não julguem!

Um dia tive a ousadia de dizer: Quero fazer pão! Pão verdadeiramente saboroso! Perfumá-lo com ervas finas! Fazer pão de passas! Fazer algo que, para além da admirável quantidade e do enebriante cheiro, seja a sublime compilação do sabor e da simplicidade! O Pão!

Ora aqui é que eu ultrapassei a marca!! Não estaria demasiadamente avisado para saber que quem faz o pão são os deuses?! Que ousadia a minha! Quanto mais não fosse e com sorte, poderia ter a benesse de amassar arduamente aquela montanha de farinha-sal-água empurrada violentamente por um fermento que não deixa o tempo descansar.

Tu és um pasteleiro! Não (e nunca - vim a saber mais tarde ) serás um Nobre Padeiro!

quarta-feira, 28 de junho de 2006

no dia em que me saiu a sorte grande

Pois até perece mentira. Nunca fui dado a grandes sortes...não me posso queixar, pois a minha também não é pequena.
Andava eu aí de beiço caído, a pontapear as pedras da calçada, para ver se debaixo de alguma eu descobria a solução.
Meses e anos. A fio.Desfiando esse cordão de dias e noites incessantes.
Emagreci. Engordei. Fumava. Deixava de fumar.
Arquivei. Arrumei e desarrumei.
Sabia que me tinham tramado.