terça-feira, 25 de novembro de 2014

Caixas de cenas

No beco havia o ruído do despontar do dia. Madrugada. fim de dia para alguns, fim de noite para os que passavam ébrios, inicio de noite para apaixonados recentes. 

As caixas eram descarregadas com ruidosa agitação.
O derreter acidentado do gelo, arrastava odores do peixe fresco. Odores que os peixeiros diziam não existir porque não os sentiam.
Os robustos carniceiros carregavam as meias carcaças com odes de virilidade, refutando que era um trabalho árduo.
Insolentes e desafiadores, os motoristas acotovelavam-se no balcão do bar, comentando cada gesto, cada elemento e politicando as atitudes e cadências em hierarquias e razões.
 
Todos se decretavam como seres afáveis. Eram uma compleição celestial de cordialidade, amizades, gostos simples e desfrute desprovido de intenções. Diziam eles. 

Perpetuavam-se assim os ruídos do despontar do dia. Esse raiar que se repetia em cada canto do mundo, igual a todos, e que se bafejava de diferença. Repetia-se, ainda assim. 
 
Batiam a madeira das caixas em reboliço para a retirada, já desprovidas dos legumes que deixaram aqui e ali marcas de sumo de esmagamento, folhas arrancadas, e até uma ou outra peça mais pequena tinha rolado e depositava-se quase imperceptível na encosta do lancil.

Sou de um desplante criticado por, encostado a ombreira da porta de serviço, ver isto e exprimir no rosto e no gesto o que se me aflora. Seja certo ou errado, nem quero saber. Deixo-me ir, saboreio os poucos momentos que não estando na frente de clientes, me posso comportar indolentemente.
Já tenho a alma cicatrizada e as mãos endurecidas.

Identificava o fedor que caracterizava os peixeiros, que ripostavam a minha franqueza sob o filtro das escamas do seu dia a dia. 
Assim é, não os sentiam. Claro que à distancia e de olhos fechados, guiados, fariam a distinção de este odor entre outros, mas quando impregnados em si, esses odores desparacem-lhe na mente.  
A lota era o seu mundo e teria de ser o mundo de todos os viventes. 
Dizem-se de palato simples. São tão complexos como os carniceiros e motoristas. Simples se veem na sua  vida e tolda-lhes o olhar que desviam com propriedade gritada todas as outras simplicidades. 

Escamam as almas na procura da pele, desgastando a beleza dos seus laivos de prata e de mar que saltam perante os pregos, perdendo o significado e distinção. O que é um peixe sem as suas escamas? mais uma carne branca.

O sangue que respingou da vitela, é diferente no olhar à gota grossa da carcaça de um porco que se engrossou na bata do seu fiel carregador? mas será em todo diferente. 
 
Dizermo-nos simples refutando a nossa humana complexidade, ou assumindo a nossa complexidade tornamo-nos mais simples? 

Com a mesma perspectiva, continuei na ombreira da porta, desenrolando o avental até que virei costas já no silêncio daquele sujo beco já no dia claro.

domingo, 23 de novembro de 2014

Comi fios de seda.

Tenho varias vidas dentro de mim.
Acho que não cabe mais nenhuma, mais nenhum ser ou nuance. Mais nenhuma variante de pessoa, de personalidade. nenhuma subtileza.
Vivi várias vezes e morri muitas mais.
As minhas, as dos outros. As que vivi com os outros.  As que os outros viveram na minha.
Como uma casa aberta, com as portas abertas, com as janelas escancaradas. Com a brisa a correr as divisões de cal e frescos esbatidos. Com o desgaste a adivinhar-se e os risos a escoar pelas frinchas da madeira viva.

Vivi várias vezes e morri muitas mais.E sobre essas vidas, no entanto, tenho a distancia dos imbecis.
Mas nao tenho a sua felicidade ingénua.
E roo a inveja devagar, como a lenha da madeira viva que se mata na lareira.

Bordaram as rendas na muselina da memória, devagar, impregnando de fios a frágil treliça. Iam pesando essas curvas feitas de pontos. Só se veem os bordados, essas flores, essas ramas, esses passaros e abstractos traços que tudo unem, pontuados de lantejolas e pailletes, em brilhos mágicos e fantasiosos.
Só se veem os bordados, fazendo desparecer a musselina que os sustentam.
Ao ranger da madeira, foram perdendo o matiz dos fios, da seda. Pelo uso ou pelo sol a que foram expostos. Enegrecidos pelo pó. Ou meramente porque perderam a novidade.

Essas vidas bordaram-se na minha, que de tão fraca ou rica, se escondeu nos fios, que estrangularam a sua trama, ou esgaçaram a sua constância. Cedeu quando foi preciso, mas nao desapareceu. 

Terei obrigado as bordadeiras a dar-me os seus fios e pontos? Arrastei neste jogo de saber a resistencia e flexibilidade da torção da fibra? Sim, despontei por duro prazer outras vidas em novelos que bordei na minha vida, vivendo tantas vidas.
A musselina que se mostrava e esvoaçava nas janelas à vista de todos roçava a madeira que rugia sob as vidas a passar. Pareciam hienas re-comendo as carcaças que ainda se mostram como corpos, sob a sombra dos bordados a se entrelaçar e a ruir, e fechavam essa casa onde julgavam habitar.

Abrindo e revisitando os meus aposentos que nao mostrei, que só eu usei e que permaneceram intactos perante o tempo, senti a madeira viva, pulsante. 
Foi sempre um jogo, ou nao.
Vivi muitas vidas e quiça nao vivi a minha, mas morri tantas outras tornando-me mais vivo.



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

entre vista


"Os vincos da pele acusavam o cansaço de demasiados fusos horários, demasiados quilómetros percorridos.
Percorridos e perdidos.
Na garganta e na voz surgia rouco o travo do ar condicionado dos hotéis, dos carros e das salas de reunião.
No olhar perdido nos cubos de gelo, a nostalgia dos jantares em lugares exóticos, a certeza de uma vida fora daquele ritmo frenético e vazio.
Estava sentado ao balcão no bar do hotel. Já era tarde.
Como pano de fundo, a cidade oprimia as janelas que tentavam libertar aquele cenário deliciosamente decorado.
Havia caras de muitas culturas, raças, tendências, credos naquele tão grande bar, mas tão intimo espaço.Cada cara, estava fechada em si mesmo. Mesmo que algumas delas estivessem acompanhadas.

Lá fora a humidade e o calor sufocavam.
O fumo que via seria dos tabacos das chichas e do ópio se ainda se fumasse nestes sítios.Não, o fumo era do entorpecer dos sentidos. Não sei porque via isto, nem como o fazia, mas via que cada corpo destilava vapor, odor, calor, sentimentos, repressões, desejos numa neblina turva. A sala estava densa….
Entre a adrenalina da aventura e a falta de coragem, estava paralisada ali.
Não sabia sequer o que fazia ali, como a minha cabeça tinha fantasiado este momento tão ao pormenor.Senti o pelos do corpo eriçarem.se e o racional empurrar-me para a arena.Afinal, tinha chegado até ali.
O desejo há muito reprimido, o prazer adiado vestiam-se de ocre.
Via-me entre as sombras reflectidas nos espelhos da sala.
Sentia sede.
O vapor que saía da minha pele era quente, húmido.Estava cansada, e não sabia que o ia encontrar. Não sabia o que dizer. Não sabia o que ia ouvir.
Tentei recolocar-me. Abstrair-me deste assoberbamento.
Aclarei os sentidos, mas não conseguia ver nada mais daquela figura.
Estava ali sentado.A camisa impecavelmente branca denunciava um dia sobre o corpo.A lã fria e o bom corte italiano, mantinham a estrutura do casaco mesmo no final da batalha. Os botões de punho pontuavam de luz e brilho esta cena parda. Não sei onde estava a gravata, se ali estivera, nem o tom dos sapatos.
Via a perna flectida no banco alto. As mãos telintavam o copo.
E eu não saia dali. Não conseguia convencer-me a entrar.
Principalmente porque não sabia como sair.
Procurei uma saída de emergência, perscrutar alguém que me pudesse acudir se aquilo tudo fosse um desastre ou corresse terrivelmente mal.
Como um afogado: antes de mergulhar no abismo, fascina-se, mesmo sabendo que pode não conseguir nadar para a segurança depois do torpor do impacto.
Não podemos prever a nossa capacidade depois de mergulhar.
Há um dia que vou sair da estrada, que tenho um acidente, que me desconcentro.
A velocidade, o abismo, o vicio, o abismo, sempre me atraíram. A falta de coragem sempre me contiveram e me mantiveram viva.
Continuava pregada ao chão de mármore. Parecia agora mole e lodoso debaixo dos meus pés…Segurava-me. A verdade é que estava a discorrer todas as desculpas para não me mover. Ou para rodar nos calcanhares e voltar a entrar no elevador, mas desta vez descer a cave, meter-me no carro e fugir dali a toda a velocidade. Ficaria noites sem dormir.
No arrependimento, castigar-me-ia. Creio que me vou punindo muito do que faço e do que evito fazer. Uma punição que não me dá prazer, que me desfaz.
Mentalmente, recordava como tinha deixado o quarto no 9.º piso. Como era. Como entraria de novo lá. 
Enchi-me de coragem. Esvaziei-me dessa coragem.
O fumo continuava a pairar. As silhuetas de fumo dum cinza rosado saiam da pele perfeita de uma magra asiática que deslizava entre as mesas a servir os hospedes. Baixou-se para apanhar um lenço de uma africana que ria continuamente. Viu-se-lhe a pele do dorso. O africano, que não ria, mas fazia rir debaixo da mesa, entesou os músculos ao ver a pele imaculadamente
pálida da asiática. Ela sabia. Desfrutaram em poucos segundos de um entreolhar que penetrava os corpos. Gozaram.
E eu sentia toda aquela reverberação. Tínia. Latejava-me a pele.
E a minha vibração foi sentida por ela. A minha ânsia, a respiração entrecortada. Deslizou até mim, e convidou-me com o suave gesto da cabeça a entrar. Estaria ali há segundos ou longos minutos.
O tempo absoluto não interessa mas o tempo vivido.
O negro olhou-me. Senti os tambores ao longe. Senti o odor da sua selvajaria.
A africana continuava a rir, abandonada a si.
Tinha que entrar, o orgulho imperava e eu não podia entregar-me a aqueles olhares que me questionavam a minha ousadia.
Já tinha feito adivinhar que tinha vontade. Que era curiosa. E no meio de uma valentia infantil, quase fanfarronice, tinha feito promessas veladas mas explícitos sentidos.
Caminhei pesadamente mas de forma a não ser ouvida.Senti a respiração do negro enquanto passava por ele. Senti o odor da negra.
A empregada, sob a farda negra, pulsava num suor imperceptível e perseguia-me com o olhar. Dentro da pele rasgada dos olhos, ardia.
Não sei se estavam estupefactos por ter avançado, pela coragem ou pela inconsciência e o medo transbordarem dos meus gestos.
Não sei se me queriam. Caminhei devagar.
Quando consegui levantar o queixo, uma mão grossa agarrou-me o pulso e sacudiu-me. Dei um gemido inconsciente e olhei para um homem, moreno, queimado pelo sol, de meia idade e olhos doce e perdidos no álcool que
inadvertidamente se metia com todos procurando companhia.
Um tuareg urbano. Um nómada. Perdido. Sem rumo. Atravessando o deserto urbano. Perdido.A asiática prontamente envolveu o cliente e libertou-me daquelas tremulas algemas humanas e como que a sibilar me soprou para seguir.
Tocou-me a pele e era como uma víbora.Fria, suave, deslizante, tentadora.
Ericei-me e recuei.Mas mais rapidamente andei até ao bar. Parei a menos de meio metro.
Uma brisa vinda de não sei onde, provavelmente da minha imaginação e medo, voou com  o meu cheiro, o meu fumo até ele. Pressentiu-me mas não me adivinhou.No momento em que levantava o olhar pesado, Toquei-lhe na mão.
Senti nesse toque a temperatura e a textura da pele. Adivinhei as veias e tendões. Ele sentiu-me o nervosismo.
Naquele segundo sabíamos porque estávamos ali.
Bebemos os dois malte. Repetidamente e de forma abrupta. Para atordoar.
Aqueles tragos eram o bilhete para a viagem.
Nunca soube, nem saberei o que ele sabia.
Mas sabia que naquele segundo sabíamos porque estávamos ali."

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

o meu irmão

corriam dias rápidos, entre os afazares obrigatórios. o sol fugia e os bagos maturavam o seu limite. cheirava aos primeiros orvalhos.
atarefado ia no seu pender, com aquele coxear que o caracterizava. tinham-lhe impregnado nas palavras que lhe dirigiam, a pena escondida.
todos tinham opinião mas ninguem vivia a sua vida e ninguem a queria viver. todos julgavam e ninguem ouvia. perdia-se naquele humor bolorento de criança tão pouco entendido.
o seu olhar cativava-me as maiores ternuras, nunca conseguindo impor-me ao perdão e amor que me brotava por cima de todas as raivas.
creio que houve momentos que ja não coxeava na vida, que já nao tropeçava, mas mantinha-se assim porque era o seu principio de vida. porque ali, naquele mundo podia ser ele com direito a todo o seu ser. livre, despojado, pueril.
ama a todos com um amor só seu e tantas vezes rapido de aproveitar. o seu coração é maior que o seu ser.
e sempre os nefastos resquicios de uma tristeza mais funda e indomavel se llhe assolavam a janela, que combate com uma revolta chorada, dorida, amarga. para os outros, mas principalmente para ele.
vai sempre atarefado, para ter a vida no seu pleno, maior, com um pulsar extenso, forte, totalitário.
vive um coração, que é todo ele e ele é todo o seu coração.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Protótipo de corrida

creio num ser superior e supremo. nada disto faz sentido.
como nada faria sentido sem esse ser. ou essa justificação.

a é um prototipo de corrida.
apura-se, mostra-se porém nao pode ser partilhado.
é único.
por vezes enche-nos de adrenalida, de superação, de motivação, expectativa e alegria.
por vezes deixa de acelerar e de espantar.
parece que vamos desistir dessa atitude épica de ter um prototipo sempre, sempre em teste.
sempre a querer ser superado e sempre a concorrer consigo proprio. sempre a esgotar-nos.

parece-nos amiúde, de umas vezes e outras, que pode ser melhorado.
e quando não nos satisfaz, parece-nos pronto - e quase justo - a ser largado na garagem, ou armazém poeirento. a ser esquecido.
mas renova-se e cria vida dentro de nós.
quem teve fé, tal como quem teve um prototipo de corrida, nao sabe viver no vazio.

a fé corre à nossa frente. mas corre nas nossas mãos. saí da nossa criação e eleva o génio a um nível superior. é sempre obra inacabada.
a fé é uma construção que alimenta o construtor.

a fé nao desiste, é feita da não-desistencia.
não falo de esperança. falo de fé.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ementa excepcional.

Numa mansidão invulgar, limpei as mãos no avental. Até eu me via lento.
Já tinha o trabalho feito e as facas afiadas.
Toda a mise en cene para qualquer banquete estava iminentemente pronta. Digo imenentemente pronta, pois não era necessaria nenhuma prontidão porque passava já grande parte da tarde e não havia vestigios de gente.

Na rua entrecruzavam-se passeantes a medo de se chegar ao restaurante uma vez que o tomavam por excepcional. Ainda assim, alguns a quem a idade, traquejo e segurança - ou bazófia - enchiam os pulmões, detinham-se na carta fixada na ombreira de pedra. Comentavam dignamente os pratos, o deleito que pressupunham, a habilidade da cozinha, e rematavam que aquele preço era certo dada a qualidade, a raridade, e certos de que seria um prazer opíparo um prato naquelas mesas.

Alguns espreitavam os vidros resplandecentes sob o sol, e de quando em vez, trocavam-se olhares e até sorrisos. Esses pontuavam raramente os meus dias. Faziam-me fantasiar sobre os comensais, os ingredientes, os odores, e o discurso corrido de fim de noite quando me afasto do campo bélico da minha cozinha onde batalho refeições sagradas para agradar e, me sento com eles. Deleitando-me a deixar-me ir.

Estava manso e ledo...numa quietude nostalgica. Os clientes eram os mesmos de sempre, os gestos repetidos, as palavras gastas.  Tive em mente faze-los enlevar a outros níveis, como de musica educá-los. Porém não passariam do mesmo, o seu paladar embrutecido - ainda assim em algo encantador - seria o  proprio limite em que se aninhavam.

Perceberá que os pratos excepcionais, não o eram mais. Para mim...necessitava de mais.
Fazer uma nova ementa para os mesmos era um caminho que ja tinha trilhado sem sucesso, aqueles paladares não exigem, nao debatem, não arrebatam.
Olhar os pratos com um novo entusiasmo era algo, que apesar de esforçado, não me saía. Já estivera perto, renovando os votos ao cebolinho, ao coentro e ao lagostín, mas rapidamente esmureci com a minha própria perícia.
Questionei-me se correria uma outra vez para desbravar outra cozinha, ou outras Cozinhas de sabores desconhecidos e não domados.E não me alentava.

E assim, passava os dias nessa mansarda que conhecia, e cada vez me via mais lento e manso a limpar as mãos suadas ao avental, com tudo pronto cada vez mais cedo e com maior eficácia... para preparar os pratos que não abandonava e que conhecia tão bem como o meu conforto conquistado e como a minha inquitude e insatisfação interior.


terça-feira, 15 de julho de 2014

qualquer resposta é boa.

na cinza penumbra da madrugada, lia os teus contornos com frieza.
entre o álcool que exalavas e o sentimento em que deambulavam as palavras e lágrimas, sobrevoava a incerteza de haver razão ou sentimento. jogavas contigo o jogo da brevidade e do imediatismo. não porque não sentisses, mas porque não sabias nada de sentimentos. a grandeza e a profundidade tinham um sabor que desconhecias mas do qual julgavas saber.
foram muitas as camas que penetraste e se calhar nalgumas perpetuaste alguns dias, mas poucas ou nenhumas aquelas em que lavaste a tua alma e em que enxugaste lágrimas alheias com as tuas já secas de tanto sofrer o alheio.
a vida já me correu pelas mãos evadindo-se de mim para ir viver a dos outros na minha alma. já me esvaziei de mim. já não estive. abandonei-me.
a frieza não é soberba nem supremacia. a frieza não é vazio ou distancia. a frieza é abnegação e abandono do meu sentimento. qualquer resposta é boa para perguntas inconsequentes e para questões profundas, quando estamos abandonados a receber qualquer resposta.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Na raíz das coisas

Uma árvore que bebe água ácida, contaminada;
que se rodeia de ervas daninhas;
por mais forte e frondosa que pareça, nunca dará frutos doces.
 

usar um machado

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terça-feira, 17 de junho de 2014

sequestro

Dei-me conta de um tumulto tumoral dentro de mim.
Não há operações, extracções ou outras acções de bisturi, manejado por réplicas do Dexter ou do Hannibal, que extrairiam aquele volume.

Numa forçada esperança recorro aos meus braços e golfejos de energia para conseguir expulsar esta vontade. Esta ânsia assassina. Suicida. Este terrorismo interior a que me submeto cada vez que pestanejo.
Mas como num ciclo verdadeiramente vicioso, entre a luta que alcança a sua meta, a revolução vê-se sempre reforçada. 

O ninho de abelhas passa a ter vespas, e o mel se transtorna num ferrão que não se distancia.
Iminente morte, deito-me com a deliciosa ternura da angustia. As almofadas desta cama são a luta e a superação, os lençóis o desejo e a tentação.

Suo. Molho-me e acordo morto de sede…
Doente? Pois sim!! Febril e preso.

Esta existência está sequestrada em cada canto da minha existência, e aquela existência é em si o sequestrador.

Não saí!  Não quero que me deixe. Sucumbo.

Esta existência que habita em mim cresce e regenera-se alimentando-se de si, e extinguindo a sua vida.
De uma clara e plácida aparência, tinha um suave pulsar. Uma existência que se dominava entre os dedos. 
Cresceu.
Por vezes assoma-se gigante dentro de mim, em cada janela e em cada espaço. A todas as horas. Invade artérias e veias, mistura os sangues e a saliva. É o negro ser. Monstruoso. Violento. Fascinante.

Quando não aguento mais, quando arreio à sua soberba, quando no negro e na sombra já cresce o lodo, quando o quero revestir de repulsa e afastar-me, curar-me, torna-se intumescido, brilhante, saudável e corado...pronto a dar-se.

Na delicia e ao sol quente de palavras genuínas esta arvore cresceu, floresceu e teve primaveras subtis. Passaram sob os seus ramos verões com cheiro a laranja e a sal.
Entre as folhas, como pequenas páginas de livros, poemas cantados no sopro da brisa, aparecia um céu azul, incandescente. 
Tomava-me de assalto e cegava-me. 
Sorri muito nesta pura brincadeira. 
Sorri na lembrança destes brilhos que entravam em mim. Esqueci-me de todas as sensações. Embalei-me e adormeci sob as suas folhas.
Um ramo ou outro partiram, mas a arvore não parou de envolver. 

A arvore não deixou de crescer e de enraizar-se.
 
Mas na sombra que sempre existe para o sol ser brilhante, estava a humidade do que não queria dizer. 
Esta humidade alimentava a arvore, as suas raízes, rega a existência para que viva mais, mais forte.
Queria que este espectro fosse repulsivo. Que me afastasse. Mas a sua viscosidade, tornou-se mais agarrada as paredes das vísceras que a repelem.

Tomou parte de mim. Tornou-se em mim.

Presente, é indelével no tempo e na memória.

Presencia tudo e corrói com a suposição da sua existência

domingo, 15 de junho de 2014

puro músculo

só os fortes podem ter ambições.

nadar na dificuldade de sair do curso de água ou escalar para não cair na avalanche obriga a esrforço.
nem sempre recompensado. nem sempre racional, válido, ou com razão de ser.
mas só os fortes, obstinados, preserverantes podem ter ambições. porque só esses aguentam.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Duro

A coragem é dura.
A liberdade é corajosa.
Ora, a liberdade é dura.

É preciso ter coragem para se viver em liberdade, em liberdade constante de viajar nos pensamentos, proferir palavras ou criar e manter omissões. A dureza de ser verdadeiro, ser único, ser louco tanto na profundidade como na frivolidade, é uma liberdade a que poucos tem coragem de aceder.

Houve quem visse uma quase perigosidade na maneira como vivo.
Num desprendimento, num sem amarrras.
Vivo de forma livre. Livre de pensar dentro de um mundo que nem quero saber se é só meu, livre para me cansar numa atençao redobrada a tudo e numa curiosidade atroz que não me deixa.
Invento.      Desinvento.
Questiono e até não quero ouvir respostas.

Mas esta forma perigosa nao me prende. E não me mata.
Não me prende porque não deixo. E naturalmente porque nao quero deixar.
Não me faz tremer ou vacilar. Cansa-me. Mas anima-me.
Porque é uma forma livre de ser. Deixar-me só ser. Assim.

É duro.

Já o sabia quando não sucumbi a facilidade de não ser livre. De me deixar ir apagando a existencia no meu mundo.
E reconheci essa dureza vezes infinitas. Na padaria e no barco. Na cozinha e na cama. No inverno e no verão.

Trago em mim essa estupidez perigosa de uma liberdade assumida.
Enrouqueço na liberdade de nao me prender à amarra da não verdade.
Gasto as palavras a dize-lo na defesa de não sucumbir. 
Ser verdadeiro é duro porque traz uma liberdade estupida.
Trago tambem na algibeira a liberdade que mostro. Quem por aqui se cruza sabe que sou livre. Quem aqui se cruzou não foi enganado. Houve quem ficasse à porta por saber ao que ia. 

Instável no pensamento, estável na convicção e no compromisso com as convicções.
Ser verdadeiro e ter a coragem de assumir perante os outros que se é livre, abrir-se a liberdade interna e mostrar-se o deesprendimento comprometido, é duro.
Nem é fácil de compreender, quanto mais de aceitar.
É duro.

No entanto sou um  livre que me enrrosco e entrelaço nos outros.Nos mundos alheios. Ceratmente levado por essa curiosidade que brota da atenção. Abro o meu tesouro de insanidades e sou permeável. Mostro. Ofereço-me em torno de mentes e ideias. Das minhas viagens e ensejos. Delicio-me na perdida certeza de me perder na minha liberdade e no entrelaçar. Entreguei a liberdade de ser livre, mas magicamente mantive-me tão livre como antes de cada entrega. Entregar é um acto igualmente livre. Corajoso.

Ser livre é duro e só.

Esse alguém que me viu a perigosidade quase libertina e psicotica, é livre.
Goza de uma liberdade hermética, fechada.
É - parece-me - igualmente duro e só.
Num mundo seu é tão livre como eu. É tão diferentemente livre, corajoso.
Não se entrelaça: tem a coragem de se assumir livre e conscientemente fechado.
Afasta qualquer entrelaço e desprende rapidamente e com uma perícia estrondosa todas as amarras que lhe lançam e todos os laços que o envolvem.
Essa liberdade é igualmente corajosa. E dura.

Porque ser-se só, é tão somente a forma de ser-se livre. De se ter a liberdade só de e para si.
Porque não ha livre-a-dois.

É só livre de forma louca quando nao permite nem entradas, mas verdadeiramente livre quando escolhe não ter saídas. Nada dali saí.
(para um curioso é um engodo que se desfere repetidamente como flecha em toda a carne)

Tem aquela liberdade corajosa e perigosa de ser-se e manter-se.
Intocável.
Visível, mas inabalável.
Visitável mas intransponível.
Como um castelo eregido num monte.
Não se entrega, mas todos o tomam por conquistado.

O seu segredo não é mostrado - porque assim o assume livremente - , com sorte são segredos algo descobertoa ou desconfiados. Sem ceretzas.

Mantem-se sozinho. Livre. Perigoso. Corajoso e suportando a dureza.
Zigzagueia com velocidade que o corpo lhe dá empurrado pela mente.
Pedala as ideias fazendo-as subir e mastiga-as na bolina com que percorre o mundo dos outros para que não o vejam.
É duro.
E sempre só. Na sua engendra veloz que não permite companhia. 

É totalmente livre.

...e quão mais perigoso que eu?


trapezistas


baloiçavam no ar, agitando o éter. Zumbiam, entrecortando as respirações absortas.

Nada mais se mantinha naquele infinito, debaixo da tela pintada de azul e fingida de abóboda celestial.
Eternos aqueles movimentos rápidos, delineavam os nossos olhares, conduziam as nossas mentes. Nada mais parecia existir com tamanha presença.
Aquela realidade única e vivida por tantos. uma maneira de administrar espanto era deter as mãos magicamente soltas entre os saltos.


Algo único. Inquestionável.
zummm-zummmm...E baloiçavam no ar os trapezistas daquele circo.
Esse circo que nos preenchia e onde vivíamos essa vida que achamos plena, mas sabemos reduzida. Sabemos que lá fora há mais, que existe mundo atras dessas portas de oleado pesado em que nos achamos exclusivos...

Aquele baloiçar seguro em cordas finas, similares a pressupostos plenos, mundanos, reais, absolutos...

Aquele baloiçar pendia levemente no ar, mas de forma tão sustentada que parecia inabalável. Tão seguro que inquestionável.

Os trapezistas guiavam-nos nesta vida.

Os trapezistas revezam-se em malabarismos, nuances da sua actuação e existência.
E condicionavam a nossa a existência nesses minutos e horas em que apenas neles nos fitávamos; que sob eles vivíamos, religiosamente. sagrada e obedientemente.


Os trapezistas caíram. Soltaram-se da mão. Desagarraram-se.

Um caiu desamparadamente na rede, e vimo-lo como um pedaço de carne sem valor e beleza. nos segundos da queda perdeu a magia e o absolutismo.

O outro, do alto, pendia fragilmente do trapézio rasgado, periclitante.

Agora olhávamos com desdém não a abóboda, mas a arena onde tudo se passa; essa arena de pó, quase lodo, onde todos os passos se revelam. Desmascarávamos essa quietude zumbida, para ver a massa humana arrastar-se nessa humilhante perda da grandiosidade, da verdade fingida e sustentada por tempos incontáveis.

Afinal . . não eram mais que nós.
nessa terra que cobre o chão, nesse pó fino que sob todos emerge, passaram ao que sempre foram: partes.
Saímos dessa realidade a que chamamos vida, esssa existencia comandada, quase fingida, absorta, quase vazia.
E voltamos ao mundano mas magnifico ser da descoberta. do caminhar à deriva, com a nossa mente e sem artifícios que nos toldam.

as verdades são como trapezistas.

Regressar sem regresso

Tinha escrito em 2012,e houvera prometido recatadamente e em contrariedade nao voltar aqui.
mas os textos estão feitos. Recatadamente corajosos e negros. Só meus. Somente partilhados num acto de coragem cobarde. a quem corrompi.
E de forma quase muda, mas certamente recatada aqui estou.

Voltei.